Enviado por Frederico Kling • setembro 4, 2015 •
DESTAQUE ,PANORAMA DA CULTURA • Publicado em Cultura & Mercado
Impulsionado pelo aumento da renda e pelo crédito fácil, o consumo da classe C foi um dos motores da economia brasileira na última década. No entanto, o ímpeto consumista em relação a bens materiais não se estendeu a gastos com cultura. A pesquisa Cultura em SP, realizada pelo Instituto Datafolha a pedido da consultoria JLeiva Cultura & Esporte, mostra que a “nova classe média” ainda é uma minoria em teatros, museus e casas de espetáculo de 21 municípios paulistas.
Os principais fatores que explicam a baixa presença da classe C nos espaços culturais são as limitações de renda e as dificuldades de acesso. “A renda e o fato de muitas vezes as pessoas viverem em áreas sem acesso a equipamentos culturais ajudam a explicar a situação”, afirma o antropólogo e sociólogo Frederico Barbosa, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), especializado em políticas públicas sociais e de cultura.
Essa sub-representação aparece claramente nos números da pesquisa Cultura em SP. Enquanto quase metade (44%) dos entrevistados nos 21 municípios paulistas analisados pertence à classe C, a proporção de membros dessa classe econômica cai para um terço entre os que disseram ter ido a teatros, espetáculos de dança, circos, museus, exposições, shows e concertos de música clássica nos 12 meses anteriores.
Ao mesmo tempo, os números indicam uma super-representação das classes A e B nesses espaços. Metade dos entrevistados pertence a esses estratos sociais, mas a proporção sobe para dois terços entre os que disseram ter realizado as atividades culturais pesquisadas ao longo do ano que precedeu o levantamento.
Os dados sugerem que essa discrepância se deve não à falta de interesse da classe C, mas a barreiras externas. Isso porque, além de contabilizar o público atual dessas atividades culturais, a pesquisa estimou qual seria o público potencial desses espaços caso as pessoas que estiveram ausentes nos 12 meses anteriores, mas deram notas de seis a 10 ao seu grau de interesse pela atividade, passassem a frequentá-los. Nesse caso, a proporção corresponde ao universo da amostra: nas sete atividades culturais pesquisadas, metade do público potencial pertence às classes A e B, e a outra metade à classe C.
Orçamento curto – Ao colocar no papel o impacto dos gastos com cultura sobre o orçamento de uma família fica mais fácil entender por que boa parte da classe C passa longe desses espaços. Segundo o Critério de Classificação Econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), a renda de uma família de classe C está entre R$ 1.446,24 e R$ 4.427,35. Já uma simples ida ao cinema de uma família com pai, mãe e filho pode chegar facilmente a R$ 100, entre ingresso, estacionamento e pipoca, o que significa 6% da renda de uma família que “ganha o piso” da classe. Ingressos para teatro e concerto são ainda mais caros.
A própria faixa de variação de renda da classe C, no entanto, leva Barbosa a fazer uma ressalva: “Não é um público homogêneo e, por isso, as pesquisas acabam tendo uma limitação quando falam de seu consumo cultural”. E se os preços dos ingressos já afastavam a classe C dos espaços culturais nos tempos de crescimento econômico, a crise e o aumento do desemprego tendem a agravar esse quadro. “Eu vejo que as pessoas já estão se retraindo mais, deixando de frequentar certos lugares para ficar com amigos, mais perto de casa”, constata a antropóloga Hilaine Yaccoub, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) do Rio de Janeiro e estudiosa do consumo das classes populares.
“A crise deve mesmo afetar ainda mais o consumo de cultura da classe C, mas não sei dizer quanto. Vale lembrar, no entanto, que da mesma maneira que um aumento de renda não muda o gosto das pessoas, uma queda também não afeta sua apreciação cultural”, pondera Barbosa.
Hilaine usa um exemplo para mostrar como os preços de ingressos afetam o consumo cultural da classe C: “Quando há um show gratuito na Quinta da Boa Vista ou na Praça XV, no Rio de Janeiro, aparecem pessoas dos mais diversos perfis socioeconômicos, mesmo com as dificuldades de mobilidade”, diz a antropóloga.
Concentração de equipamentos – Além dos preços altos, outro fator que contribui para excluir a classe C é a concentração geográfica dos espaços culturais. “A questão do afastamento em relação aos equipamentos de cultura é agravada pelos problemas de mobilidade, principalmente nas grandes cidades”, afirma Hilaine. Segundo ela, a rotina diária, com deslocamentos longos entre a casa e o trabalho, acaba desestimulando também a prática de atividades culturais: “As pessoas não têm energia para ir ao cinema ou ao teatro no tempo livre”.
O cinema, a mais industrial das artes, ilustra bem o problema da distribuição dos equipamentos culturais no Brasil. De acordo com o Mapeamento de Salas de Exibição realizado pela Ancine, apenas 36 dos 1.794 municípios da região Nordeste têm salas de cinema; na região Norte, só 20 de 450; e no Centro-Oeste, 26 de 472. Nas regiões Sul e Sudeste a proporção é um pouco maior, mas mesmo assim é relativamente baixa. No Sul, 87 dos 1.188 municípios têm espaços de exibição; no Sudeste, são 218 de 1.450 – a maior proporção do país.
A concentração é ainda mais dramática para outras atividades culturais que não operam sob a mesma lógica industrial do cinema, como museus, teatros e salas de concerto e de dança. Não é à toa, portanto, que, apesar das 2.833 salas de exibição existentes no Brasil, ainda sobra espaço para projetos que levam o cinema para áreas sem este tipo de equipamento. O Cine em Cena, por exemplo, acaba de comemorar um ano de itinerância cinematográfica por diversos estados. “Nós fazemos exibições em lugares que vão desde escolas até praças públicas. As sessões mobilizam toda uma cidade do interior”, conta Edson Souza, da Ibirajá Produções, responsável pelo projeto.
“Já fizemos sessões na região dos lagos, no Rio de Janeiro, tradicional reduto de férias que abrange cidades como Cabo Frio e Búzios. Mas estamos presentes até mesmo em lugares onde há cinemas, mas não em todos os lugares, como, por exemplo, na Praça da República, bem no centro de São Paulo, onde tivemos um público bem diversificado”, continua Souza.
Barreira invisível – Além dos obstáculos visíveis, há outras barreiras mais sutis que restringem a presença do público da classe C em atividades culturais. “Há uma construção ideológica que transforma certas coisas em práticas da elite, o que faz com que as pessoas não se sintam parte do contexto”, explica Barbosa.
“Lugares como museus e espaços de espetáculos de música e dança são quase sempre verdadeiros monumentos arquitetônicas, muito imponentes, que intimidam muita gente”, afirma Hilaine. “Há uma violência simbólica de que a cultura dita culta não deve e não pode estar acessível a pessoas de baixa renda”, acrescenta a antropóloga.
Uma forma de derrubar essa barreira invisível é investir em ações de formação de público, afirma Leandro Knopfholz, diretor geral do Festival de Teatro de Curitiba, o mais importante evento do gênero no Brasil. “É preciso uma oferta mais bem planejada e uma comunicação dirigida para criar o hábito”, diz ele.
Nesse sentido, Hilaine sente falta de uma maior aproximação entre as áreas de educação e cultura: “Deveria ser colocado no currículo a obrigatoriedade de um mínimo de frequência a lugares como museus e teatros. Há muitas casas de espetáculos que ficam fechadas de segunda a quinta. Por que não abri-las, então, para o público estudantil e ajudar a formá-lo?”, questiona a antropóloga.
A criação de atividades que atraiam o público classe C, no entanto, não significa nada se não for bem comunicada. “Em alguns jornais até saem programações gratuitas, mas quem lê jornal hoje em dia?”, questiona Hilaine. Ciente dessa limitação, Knopfholz ressalta que o Festival de Teatro de Curitiba procura se comunicar com cada público especificamente e se relacionar com o público-alvo através de mídias próprias e redes sociais.
Escolher os canais corretos é um bom começo, mas para se comunicar de fato com a classe C é fundamental saber falar a mesma língua que essas pessoas. “De um ponto de vista normativo, aumentar a oferta de possibilidade de exposição do público a manifestações artísticas já ajudaria a atrair mais as pessoas da classe C, mas isso tem de vir acompanhado de uma estratégia mais diversificada, que fale com essa camada da população”, afirma Barbosa.
Este é o desafio que se coloca para os espaços culturais que querem atrair esse público para suas atividades.
*Essa é a quarta de um conjunto de reportagens sobre indicadores que Cultura e Mercado publica em 2015. A série baseia-se nos dados da pesquisa Cultura em SP, da consultoria JLeiva Cultura & Esporte.
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