A hora e a vez da mulher no audiovisual

Enviado por Mônica Herculano • março 10, 2016 • Publicado originalmente em www.culturaemercado.com.br

cinema bras
A namorada do jornalista em Cidade de Deus, a dançarina que nao falava muito em Lavoura Arcaica, a gostosa selvagem em Macunaíma, a amada do jovem viciado em maconha em Bicho de Sete Cabeças e a mulher que apanhava do marido e era estuprada por cangaceiros, e gostava, em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Filmes que marcaram a história do cinema nacional, no entanto personagens com as quais a maioria das mulheres não se indentifica. Foi assim com a cineasta Petra Costa, que em um exercício de memória as citou durante a segunda mesa do RioContentMarket, nesta quarta-feira (9/3), na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.

O evento, um dos mais importantes sobre mercado audiovisual na América Latina, reuniu ainda na mesma mesa a autora da novela Os Dez Mandamentos, Vivian de Oliveira; a roteirista e diretora Rosane Svartman; a cineasta Anna Muylaert; e a diretora colegiada da Ancine, Debora Ivanov. Mediadas pela sócia da produtora Coração da Selva, Geórgia Costa Araújo, elas conversaram sobre o papel da mulher hoje no mercado audiovisual.

Existe um cinema feminino, ou feminista? A questão colocada por Petra parece ainda não ter uma resposta. Mas parece ser consenso que é necessário parar de tratar o gênero como corpo. “A questão não é o masculino ou feminino, mas o corpo que roubam de nós, para retratar organismos que se opõem. É complicado viver em um país onde na TV só aparecem louras e bundas”, disse a diretora de Elena e O Olmo e A Gaivota.

“Não temos que pensar no que a gente perde quando a mulher é excluída, mas no que a gente ganha quando ela é incluída”, completou Rosane, lembrando que ao mesmo tempo em que é fundamental pensar na voz feminina, também é importante colaborar, escrever e dirigir com homens.

Anna concordou. “Eu nunca entendi que existisse um olhar feminino no sentido de gênero. Acho que existe esse olhar independente do sexo do diretor. Tanto homem quanto mulher pode fazer filme feminino ou masculino, mas é muito importante sim que a gente comece a falar do ponto de vista da mulher, porque a mulher, embora seja maioria, é vista como minoria”, pontuou. De acordo com o Censo Demográfico 2010, as mulheres compõem 51% da população total brasileira.

Presença feminina – Em janeiro de 2015, Anna ouviu da programadora do festival de Sundance, Caroline Libresco, que uma característica da maioria dos filmes que ela tinha visto para a seleção era a conscientização de que já passava da hora do sexismo acabar. E que esse seria um tema recorrente nos meses seguintes. Não deu outra.

“Nunca me entendi como uma roteirista mulher. Sempre sofri sexismo, mas tentava superar me concentrando no trabalho. Nunca pensei em fazer um filme de mulher ou de homem, embora a ideia original do Que Horas Ela Volta tivesse um foco na mulher. Mas quando cheguei em Sundance, vi que o filme passava com excelência num teste que indica o nível de machismo dos filmes”, contou a diretora do filme que levou o prêmio especial do júri no festival norte-americano.

O teste avaliava se o filme: tinha ao menos uma personagem mulher com nome, um diálogo entre duas mulheres, e que o assunto desse diálogo não fosse homem. “Só aí me atentei que todos os heróis e filmes que amo são protagonizados por homens”, disse Anna, que até então não pensava que seu filme fosse feminista.

Para Debora Ivanov, as mulheres precisam ter menos humildade, enquanto os homens precisam ter mais. Ela apresentou dados de uma recente pesquisa feita pela Ancine sobre a presença feminina no audiovisual, que considerou a participação da mulher na produção executiva, roteiro, direção e composição societária das produtoras.

Os dados foram levantados a partir do Sistema Ancine Digital, do relatório de CPB’s emitidos em 2015 e do conteúdo constituinte de espaço qualificado (programação excluindo conteúdos religiosos ou políticos, manifestações e eventos esportivos, concursos, publicidade, televendas, infomerciais, jogos eletrônicos, conteúdos jornalísticos e programas de auditório ancorados por apresentador).

Das 2.606 obras analisadas, 889 eram documentários, 756 ficção, 547 videomusical. Quarenta e nove porcento dos programas foram veiculados (em sua primeira exibição) em TV paga, 19% em sala de cinema, 12% em TV aberta.

A presença feminina corresponde a: 19% na direção (contra 74% homens); 23% em roteiro (contra 65% homens); e 41% em produção executiva (47% homens). E elas estão mais presentes na produção executiva, direção e roteiro de documentários – 46%, 28% e 34%, respectivamente – do que em ficção (41%, 18% e 15%) e animação (26%, 13% e 23%).

No acesso ao fomento indireto ou ao Fundo Setorial do Audiovisual, a participação feminina é de 20% na direção (contra 72% homens) e 23% no roteito (contra 52% homens), mas supera os homens na produção executiva (47%, contra 40% homens).

E no que diz respeito ao quadro societário, de um total de 803 empresas, 33% têm mulheres na sociedade e no capital social e 16% das empresas são só de mulheres (contra 47% só de homens).

“Temos presença maior na produção em ações que requerem mais organização e presença pequena na construção das narrativas. Apesar da produção executiva ter sua grande importância, existe uma valorização muito grande da criação, e nós não estamos lá”, alertou a diretora da Ancine, lembrando que no final de 2015 a agência anunciou a paridade de gênero nas comissões de seleção do FSA e a exigência de declaração de gênero dos profissionais no registro de obras.

Para Anna Muylaert, o mundo está precisando do feminino. “É um momento em que é preciso equilibrar, e existe uma consciência global sobre isso”,

Super heroínas – Durante muitos anos, Melissa Rosemberg viu na TV grandes personagens, todos muito ricos interiormente, porém todos homens e brancos. “Adoro todos eles, mas achei que já era hora da sociedade aceitar mulheres protagonistas com todas as suas nuances psicológicas”, contou na mesa seguinte a criadora da série do Netflix Jessica Jones.

Ela disse  que adoraria fazer um Tony Soprano mulher. E a partir daí criou uma personagem cheia de defeitos, mas com super poderes. “A série não se resume a uma super heroína. Você não escreve uma super heroína, você escreve um personagem interessante. Ninguém te pergunta como é que se escreve um personagem homem branco. Claro que o fato dela ser mulher dá forma à historia, mas nunca informo isso como algo fundamental”, explicou.

Ela contou ainda que, quando apresentou o primeiro esboço para a rede ABC, a resposta que teve foi que o material era muito pesado. “Acho que o fato de ser uma mulher num papel tão pesado foi menos atraente pra uma rede de TV. A Netflix é o lugar ideal pra essa história.”

Segundo Madeleine Di Nonno, CEO do Instituto Geena Davis, a mídia pode ser inspiradora em termos de empoderamento, em especial para as crianças. “Quando as mulheres são roteiristas, personagens femininos aumentam 50%  nos programas; e quando há diretoras mulheres, o aumento é de 60%. O papel de decisão das mulheres por trás das câmeras faz diferença nesse sentido”, disse a executiva.

Ela também defendeu que, apesar de muitas pessoas pensarem que existe uma “conspiração do mal” contra mulheres em Hollywood, esse é na verdade um viés inconsciente. E indicou: ao criar um personagem, mude esse personagem para que seja mulher. Indique no seu roteiro que determinada cena com multidão deve ter tantas mulheres. E assim avançaremos.”

Gênero e raça na mídia – O Instituto Geena Davis, que já 10 anos dedica-se ao tema, fez uma pesquisa no Brasil sobre a percepção da desigualdade de gênero e raça na mídia. Caroline Heldman, professora associada de Política do Occidental College, e João Feres, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, apresentaram alguns dos principais resultados na terceira mesa do RioContentMarket.

Foi identificado que:

– 33% das mulheres brasileiras foram influenciadas a buscar carreiras por causa de modelos que elas viram na TV;
– 75% dos brasileiros sabem que a mídia influencia suas vidas diárias;
– 74% dos brasileiros acham que há nudez e sexo demais na mídia de entretenimento nacional;
– 69% dos brasileiros ainda acreditam que a mídia mostra os homens no controle;
– 69% dos brasileiros acreditam que as mulheres são mostradas em papeis tradicionais na TV;
– 73% dos brasileiros acham que as mulheres são mostradas de maneira muito sexualizada na mídia;
– 70% dos brasileiros acham que a mídia de entretenimento faz bom trabalho em incluir diversidade racial (e isso não varia de acordo com a raça dos respondentes);
– 64% acham que o negro é mostrado na TV e no cinema como estereótipo;
– 63% gostariam de ver casos de violência doméstica punidos  na TV;
– 64% acreditam que a mídia faz um bom trabalho mostrando as consequências dos abusos contra crianças;
– 86% querem incluir mais questões sociais na TV e no cinema.

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